Por Juliana Avila Gritti
O governador de São Paulo, João Dória Jr. (PSDB) anunciou que irá conceder à iniciativa privada a gestão de sete presídios. A proposta já integrava o plano de governo do tucano, que prometia “aumentar o número de vagas, inclusive com as PPPs, de forma que o detento/reeducando trabalhe para permitir a sua reinserção na sociedade e diminuir a reincidência”.
O Brasil é o terceiro país que mais prende pessoas no mundo. Esse cenário de superlotação se reflete em inúmeras violações de direitos humanos que afetam uma parcela específica da população: pessoas negras, jovens e das periferias. É fato que algo precisa ser feito, mas é preciso ter cuidado com os modelos que são propostos.
A solução de Dória vem ganhando mais espaço no debate sobre a crise do sistema carcerário. Por partir de um princípio liberal, não é a toa que a grande maioria dos presídios privados se concentram nos Estados Unidos. No Brasil, a inserção da iniciativa privada existe principalmente na forma da privatização de serviços. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, de 2014, a terceirização estava presente em 58% das penitenciárias brasileiras, sendo a principal delas a alimentação. O último Infopen, relativo a dados de 2016, não possuía mais informações quanto a parcerias com empresas privadas.
O ITTC, como uma organização que trabalha com o tema há mais de 20 anos, se coloca crítica à política de privatização e traz quais são os tipos de parcerias público privadas e os impactos de cada uma delas na população.
Tipos de participação privada
Os argumentos…
“Privatizar os presídios vai reduzir os custos do Estado”
Um dos argumentos mais comuns para a defesa do sistema de privatização dentro do universo carcerário é a redução de gastos do Estado. Entretanto, faltam pesquisas confiáveis a respeito da viabilidade dessa alegação. A CPI do Sistema Carcerário, finalizada em 2015, apurou que o custo de uma pessoa presa para o poder público estadual variava entre R$2 mil e R$3 mil por mês. Em unidades com algum nível de participação privada, o custo subia para cerca de R$4 mil.
O gasto elevado do Estado, segundo quem defende a privatização, seria usado para investir em serviços de melhor qualidade, e a lógica empresarial seria mais eficiente para incentivar a pessoa presa a trabalhar e gerar renda. A médio prazo, o Estado conseguiria ter seus gastos reduzidos. Uma pesquisarealizada pela Pastoral Carcerária em 2014 concluiu que, embora a qualidade dos serviços de fato apresentem melhora, a gestão privada não eleva a empregabilidade.
Os EUA, adotados como referência na privatização do sistema carcerário, anunciaram em 2016 que deixariam gradativamente de utilizar esse modelo. A decisão foi tomada após análise dos resultados de uma pesquisa realizada pelo Departamento de Justiça sobre prisões privadas. Segundo o documento, os estabelecimentos apresentaram maior número de agressões, motins e contrabando e menos oportunidades de reabilitação, além de não resultarem em diminuição significativa de custos.
Na verdade…
A privatização cria um negócio que lucra às custas do aumento do número de pessoas presas, que se tornam um nicho de mercado. Ou seja, quanto maior o número de encarceramentos, maior o lucro das empresas envolvidas, que receberão mais repasse de verbas do Estado. A partir de uma lógica neoliberal, a pessoa presa torna-se uma mercadoria.
Posto que o ITTC luta pelo fim do encarceramento em massa e pela ruptura dessa racionalidade punitivista e ineficiente, a privatização total do sistema penitenciário vai de encontro à nossa perspectiva institucional. Tal tipo de gestão não apenas corrobora com um sistema comprovadamente falido, mas cria possibilidade para novos mecanismos violadores de direitos, já que transfere poderes estatais para uma empresa privada, cujo objetivo central é o lucro.
“Privatizar presídios vai criar mais vagas para acabar com a superlotação”
De acordo com o último Infopen, a taxa de ocupação – número de pessoas presas por vagas disponíveis – era de 197,4% em 2016. Todas as unidades federativas se enquadraram no cenário de superlotação, somando 726,7 mil pessoas privadas de liberdade em todo o país – sendo que um terço delas está no estado de São Paulo.
Estes crescentes números, precisam ser analisados com calma. Por exemplo, 40% das pessoas presas ainda não receberam condenação; entre as mulheres, a porcentagem sobe para 45%. A prisão provisória, conforme abordamos em textos anteriores, deveria ser usada como medida excepcional, respeitando o fundamento de presunção de inocência – deliberação que não tem sido colocada em prática. Caso fosse respeitada, já aliviaria consideravelmente o problema da superlotação.
Em relação às mulheres, o assunto fica ainda mais grave. O número de mulheres presas aumentou mais de 600% nos últimos anos. Para além do alto número de prisões provisórias de mulheres, já existem diversas leis, como o Marco Legal da Primeiro Infância, e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como as Regras de Bangkok, que garantem medidas não privativas de liberdade para mulheres, principalmente no caso das mães, que representam 80% da população feminina presa.
No que tange às pessoas que já receberam suas sentenças, existem regimes de cumprimento de pena para além do encarceramento – as chamadas alternativas penais, um dos temas estudados pelo ITTC. Atualmente elas são aplicadas apenas a crimes de pequeno potencial ofensivo, nos quais a prisão dificilmente seria o caminho. O ITTC, assim como outras entidades atuantes no ramo da justiça criminal, defende que tais penas podem e devem ser utilizadas para crimes mais graves. Confira aqui um infográfico sobre o assunto.
“Presídios privatizados apresentam menores taxa de reincidência”
Outro forte argumento para a defesa das PPPs são os números alegadamente mais baixos de reincidência em unidades sob tutela da iniciativa privada. A comparação, porém, não é adequada por dois fatores: a escassez de dados oficiais sobre reincidência no sistema penitenciário estatal e a diferença na operação dos dois modelos de gestão.
Um pressuposto comum é de que a reincidência no país fica em torno dos 70%. A pesquisa Reincidência Criminal no Brasil (2015), realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) a pedido do CNJ, demonstrou que o número não se sustenta. A agência de checagem Lupa também escreveu sobre o tema em um artigo de 2016, ressaltando as diferentes interpretações sobre o que configura reincidência.
Em segundo lugar, as unidades privatizadas funcionam com uma lógica distinta, como a estipulação do perfil da população presa, composta pelas pessoas consideradas “menos problemáticas”. Por exemplo, para ser admitido no presídio de Ribeirão das Neves (MG), primeiro no país construído e administrado por uma empresa, é necessário ser primário, não ter no histórico faltas graves e associação com organizações criminosas, e submeter-se a condições de trabalho extremamente precarizadas.
O procedimento, portanto, reforça a já existente seletividade penal, num sistema composto majoritariamente de pessoas negras, pobres e moradoras de regiões periféricas. As aceitas para os presídios em PPP, portanto, já seriam menos predispostas a essa reincidência, por comporem uma massa prisional fundada em critérios de classe e cor.
“A privatização humaniza o cárcere”
Devido às péssimas condições das prisões brasileiras, outra justificativa a favor da privatização diz respeito à humanização do cárcere. A gestão empresarial supostamente oferece mais suporte material às instituições e proporciona mais vagas de trabalho remunerado.
Entretanto, a experiência brasileira, assim como de outros países, mostra que a terceirização de serviços nas penitenciárias acaba sendo mais uma forma de precarização do trabalho. Ela expõe as pessoas a atividades de risco sem oferecer qualquer tipo de direito em contrapartida, já que, pela Lei de Execução Penal, o trabalho dentro da prisão não é regido pela CLT. Desta forma, abre-se caminho para uma exploração ilimitada de mão-de-obra.
O ITTC entende que o cárcere é, por definição, um ambiente violador de direitos, e falar em humanização deste espaço é ilusório. Ainda, o Instituto acredita que assegurar o acesso da população a direitos básicos, protegidos pelo princípio da dignidade humana, é um dever do Estado, que não pode ser repassado a uma lógica de mercado.
Via Justificando