Por: Roniewerton Pacheco Fernandes
O sistema prisional brasileiro é um dos mais complexos e desafiadores do mundo, caracterizado por superlotações, condições precárias e uma constante tensão entre segurança, administração e ressocialização. Nesse contexto, a criação da Polícia Penal, instituída pela Emenda Constitucional nº 104 de 2019, representa um marco na estrutura da segurança pública do país, ao incluir essa nova força no artigo 144 da Constituição Federal, ao lado de instituições como a Polícia Federal, a Polícia Civil e a Polícia Militar. Contudo, passados mais de cinco anos desde sua criação, persiste uma lacuna significativa: a ausência de uma Lei Orgânica Nacional que defina claramente as funções, atribuições e limites dessa nova categoria policial. Este artigo busca analisar a situação do sistema prisional brasileiro, o papel da Polícia Penal e os desafios decorrentes da falta de regulamentação, propondo uma estrutura que contemple as diversas dimensões de atuação dentro das unidades prisionais.
O Sistema Prisional Brasileiro: Uma Visão Geral
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 800 mil pessoas privadas de liberdade, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Esse número reflete um aumento exponencial nas últimas décadas, impulsionado por políticas de encarceramento em massa e pela guerra às drogas. No entanto, a infraestrutura prisional não acompanhou esse crescimento, resultando em uma média de 8,2 presos por agente, bem acima do padrão recomendado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que sugere a proporção de 1 agente para cada 5 detentos. Essa realidade expõe a fragilidade do sistema, marcada por rebeliões, violência interna e dificuldades na gestão cotidiana das unidades. Historicamente, a custódia de presos no Brasil foi desempenhada por policiais militares e civis, mas, a partir das recomendações internacionais na década de 1990, houve uma transição para agentes penitenciários civis, sob o lema “quem prende não deve custodiar”. Esse movimento visava separar as funções de repressão criminal das atividades de guarda e ressocialização, mas acabou gerando uma categoria profissional sem identidade clara dentro do sistema de segurança pública. A criação da Polícia Penal, portanto, surge como uma tentativa de formalizar e valorizar esses profissionais, equipará-los às demais forças policiais e integrá-los ao arcabouço constitucional da segurança pública.
A Polícia Penal: Uma Instituição em Construção
A Emenda Constitucional nº 104/2019 estabeleceu que às polícias penais cabe “a segurança dos estabelecimentos penais”, mas não detalhou o escopo dessa atribuição. Essa vagueza gerou uma série de dicotomias e confusões entre os servidores, especialmente quanto ao tipo de atividade policial a ser exercida. A Polícia Penal é, em essência, uma força de caráter intramuros, focada na vigilância, custódia e controle dentro das unidades prisionais. No entanto, em alguns estados, como Goiás e São Paulo, observa-se uma expansão de atribuições, como escoltas externas, operações táticas e até atividades de inteligência prisional, o que levanta questionamentos sobre os limites de sua atuação. Sem uma Lei Orgânica Nacional, cada unidade federativa tem regulamentado a Polícia Penal de forma autônoma, resultando em um mosaico de legislações estaduais que variam em estrutura, atribuições e direitos. Por exemplo, em Santa Catarina, a Lei Complementar nº 774/2021 define uma estrutura hierárquica e atribuições específicas, enquanto no Rio de Janeiro, a Lei Orgânica aprovada em 2022 foi criticada por extrapolar as competências constitucionais, invadindo funções da Polícia Civil, como a elaboração de termos circunstanciados. Essa falta de uniformidade nacional compromete a identidade da Polícia Penal e gera insegurança jurídica para seus servidores.
Dicotomias e Confusões na Atuação Policial
A ausência de uma definição clara sobre o que constitui a “atividade policial” da Polícia Penal é um dos principais entraves para sua consolidação. Tradicionalmente, o conceito de polícia no Brasil está associado à ostensividade (Polícia Militar) e à investigação (Polícia Civil). A Polícia Penal, por sua vez, opera em um ambiente fechado, onde a segurança é exercida por meio de revistas, controle de motins, apreensão de ilícitos e monitoramento de detentos. Contudo, essas funções, embora de natureza policial, não se encaixam perfeitamente nos modelos clássicos de policiamento, o que gera confusão entre os próprios servidores. Outro ponto de tensão é a relação entre as atividades intramuros e extramuros. Enquanto a Constituição limita a Polícia Penal à segurança dos estabelecimentos penais, a prática em alguns estados inclui escoltas judiciais e hospitalares, recaptura de foragidos e até operações conjuntas com outras forças de segurança. Essa expansão, embora necessária em contextos de crise, carece de respaldo legal uniforme, o que pode levar a questionamentos judiciais e a uma sobreposição de competências com outras polícias.
A Necessidade de uma Lei Orgânica Nacional
A criação de uma Lei Orgânica Nacional para a Polícia Penal é essencial para unificar os princípios, definir o papel da instituição e estabelecer diretrizes que contemplem as três grandes áreas de atuação no sistema prisional: segurança, administração e serviços técnicos. Inspirando-se em modelos como o da Polícia Federal, que possui cargos distintos para funções operacionais (agentes e delegados), periciais (peritos) e administrativas (técnicos), a Polícia Penal poderia ser estruturada em três categorias principais:
1. Policial Penal Operacional: Responsável pelas atividades de segurança intramuros e extramuros, como vigilância, custódia, escoltas, controle de motins e operações táticas. Este seria o núcleo policial da instituição, com formação voltada para o uso de armamento, técnicas de contenção e inteligência prisional.
2. Policial Penal Administrativo: Encarregado da gestão administrativa das unidades prisionais, incluindo registros, relatórios, planejamento logístico e coordenação de políticas de ressocialização. Essa categoria atenderia às demandas burocráticas e de suporte, essenciais para o funcionamento do sistema.
3. Técnico Penal: Focado em serviços especializados, como assistência psicológica, pedagógica e social aos detentos, além de perícias internas (ex.: análise de materiais ilícitos apreendidos). Este cargo exigiria formação técnica ou superior em áreas específicas, contribuindo para a ressocialização e a produção de dados para o sistema de justiça.
Essa estrutura tripartite permitiria uma divisão clara de funções, evitando a sobrecarga dos policiais penais operacionais com tarefas administrativas ou técnicas, e garantindo que cada área receba profissionais qualificados para suas demandas específicas. Além disso, a Lei Orgânica deveria prever:
– Autonomia funcional: Garantir que a Polícia Penal tenha independência em suas operações, subordinada ao órgão administrador do sistema penal de cada unidade federativa, mas com diretrizes nacionais.
– Formação unificada: Estabelecer um currículo básico para a formação dos policiais penais, incluindo treinamento em segurança, direitos humanos e gestão prisional.
– Limites de atuação: Delimitar as atividades intramuros e extramuros, evitando conflitos com outras forças policiais e assegurando conformidade com a Constituição.
– Carreira e valorização: Definir planos de cargos e salários, aposentadoria especial e garantias trabalhistas, reconhecendo o risco e a especificidade da profissão.
Desafios e Perspectivas
A implementação de uma Lei Orgânica Nacional enfrenta obstáculos políticos e estruturais. A diversidade das realidades regionais no Brasil dificulta a criação de um modelo único, enquanto a resistência de outras forças policiais, como a Polícia Civil, podem gerar disputas de competência. Além disso, o investimento necessário para estruturar a Polícia Penal – em termos de pessoal, equipamentos e infraestrutura – exige vontade política e priorização orçamentária, algo desafiador em um contexto de crise fiscal.
Por outro lado, a consolidação da Polícia Penal oferece perspectivas promissoras. Ao liberar as polícias militares e civis de funções como escolta e guarda de presos, o Estado pode otimizar seus recursos de segurança pública. Ademais, uma instituição bem definida e estruturada pode contribuir para a redução da violência no sistema prisional, melhorar as condições de trabalho dos servidores e fortalecer os esforços de ressocialização, alinhando-se aos princípios da Lei de Execução Penal (LEP).
Conclusão
O sistema prisional brasileiro encontra-se em um momento de transição com a criação da Polícia Penal, mas a falta de uma Lei Orgânica Nacional perpetua incertezas e dicotomias que comprometem sua eficácia. A definição clara das funções policiais, administrativas e técnicas, por meio de uma estrutura tripartite, é um caminho viável para atender às complexas demandas das unidades prisionais. Mais do que uma formalidade legislativa, a regulamentação da Polícia Penal é uma oportunidade de reestruturar o sistema prisional, valorizar seus profissionais e alinhar a segurança pública aos objetivos de justiça e reintegração social. Sem esse direcionamento, a Polícia Penal corre o risco de permanecer uma instituição incompleta, incapaz de cumprir plenamente seu papel no cenário nacional.
Por Roniewerton Pacheco Fernandes
Apresentação do Autor
Roniewerton Pacheco Fernandes é Cientista Político e Gestor Público, com especializações em Administração Pública, Relações Institucionais e Governamentais, Psicologia e Criminologia e em Compliance. Com 24 anos de atuação como Polícial Penal no estado do Rio Grande do Sul, acumulou vasta experiência no sistema prisional brasileiro, complementada por sua colaboração junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública na formulação de de segurança pública e políticas penitenciárias. Sua formação acadêmica interdisciplinar e sua trajetória prática o qualificam como uma voz autorizada para analisar os desafios e propor perspectivas inovadoras para a segurança pública e a gestão penitenciária no Brasil.