Não faz mais sentido, para mim, dedicar tempo estudando o papel da inteligência artificial no serviço público. A distopia já está aqui, visível na maneira como instituições e tecnologias reduzem o humano a engrenagens funcionais. Como o budismo nos ensina, aceitar a impermanência das coisas pode ser o primeiro passo para enxergar com clareza e reimaginar o que realmente importa. Autores como Yuval Noah Harari, Shoshana Zuboff, Stuart Russell e Nick Bostrom já alertaram que, quando desvinculados de um propósito maior, os avanços tecnológicos amplificam nossa desconexão e alienação. No entanto, aceitar essa realidade não significa resignar-se. É justamente no reconhecimento da crise que podemos encontrar as brechas para a transformação.
No Sistema Prisional, a crise se manifesta em dois aspectos principais: a perda do sentido simbólico do trabalho e o rompimento dos laços sociais. O trabalho penitenciário, que deveria ser um espaço de reconstrução e transformação, tornou-se um conjunto de tarefas prescritas, desprovidas de qualquer dimensão humana maior. Muitos servidores entram no sistema motivados por valores como justiça e segurança ou, em outros casos, pela busca de estabilidade e segurança material. No entanto, rapidamente se veem em rotinas que não apenas esvaziam sua vocação, mas também anulam a vocação que poderia ser despertada. Existem valores adquiridos ao longo da trajetória; ou seja, se acreditamos que os presos podem mudar, por que não acreditar que o colega também pode? Infelizmente, muitos de nós paramos até de acreditar nisso.
Esse descrédito é compreensível em um ambiente onde o trabalho se reduz ao cumprimento de ordens e à repetição de processos. Ao invés de lidarem grande parte do tempo com humanos, os servidores penitenciários se veem consumidos pela burocracia, preenchendo relatórios, respondendo e-mails e lidando com sistemas administrativos que os afastam da realidade concreta do sistema, da vida como ela é, para lembrar Nelson Rodrigues. Essa dinâmica não apenas desumaniza os servidores, mas também perpetua a ideia de que o sistema prisional é incapaz de gerar mudanças reais. O trabalho, descrito por Emerson Merhy como “trabalho morto”, sufoca a criatividade e a subjetividade, transformando o servidor em mais uma peça de uma engrenagem burocrática.
O rompimento dos laços sociais, o segundo aspecto dessa crise, é igualmente evidente. E isso não causa suicídio, ansiedade e depressão, mas seria anticientífico eu dizer que, com certeza, não contribui. Vivemos em uma sociedade onde as polarizações ideológicas e o individualismo extremo enfraquecem nossa capacidade de empatia e solidariedade. Essa lógica também se manifesta no ambiente prisional, onde internos e servidores compartilham o mesmo espaço físico, mas permanecem isolados em suas realidades. A crença de que as pessoas podem mudar — uma ideia que deveria ser um pilar do sistema prisional — foi abandonada por muitos. E, quando deixamos de acreditar na mudança do outro, também deixamos de acreditar em nossa própria capacidade de transformação.
Contudo, é aqui que precisamos retomar o fio da esperança. Aceitar a realidade da distopia não é admitir que ela seja definitiva. O Sistema Prisional pode ser reimaginado, mas isso exige um esforço coletivo, tanto prático quanto conceitual. Imagine, por exemplo, técnicos superiores que desenvolvam políticas mais sensíveis e humanizadas, promovendo menos burocracia e mais ações inteligentes, orgânicas e ecossistêmicas. Um trabalho que dialogue com as complexidades do sistema e que traga impacto real, alinhado a uma visão mais ampla e integrada de transformação social. Não se trata de apenas gerenciar processos, mas de fomentar conexões e soluções que respondam às verdadeiras necessidades humanas do sistema.
E a Polícia Penal, só para garantir direitos ou melhorar a condição funcional ou mesmo a materialidade do trabalho, com frutos laboriosos em dinheiro, só vai, isoladamente, reforçar a crise da modernidade, que é a ascensão social desprovida de sentido. Já ouvi um passarinho por aí dizer: continuamos desvalorizados, mas éramos mais alegres e unidos, antes do “belo canto da sereia” de uma tal de Polícia Penal.
Essas mudanças não são fáceis, nem rápidas. Requerem investimento, coragem e, principalmente, a disposição de acreditar novamente que o trabalho prisional pode ser mais do que uma engrenagem operacional. Que mudar presos talvez não mude o mundo, mas pode mudar vidas. Que mudar processos não resolve tudo, mas pode transformar pessoas. E que, mesmo nas condições mais difíceis, existe a possibilidade de resgatar o sentido simbólico do trabalho e reconstruir os laços sociais que nos fazem humanos.
A distopia é real, mas ela não precisa ser uma sentença. Com pequenos gestos — uma conversa que humaniza, uma formação que amplia horizontes, uma iniciativa que conecta —, podemos abrir as brechas por onde a luz entra. Não se trata de otimismo ingênuo, mas de reconhecer que a transformação começa no momento em que escolhemos acreditar novamente. O trabalho no sistema prisional não precisa ser apenas uma função; pode ser uma oportunidade de mudança, para os internos, para os colegas e, sobretudo, para nós mesmos. Afinal, uma coisa a inteligência artificial ainda não aprendeu: a pensar fora da caixa, pois pensar fora da caixa não combina com programação prévia.
Por: Gustavo Pedro Polese, técnico superior penitenciário/psicólogo